Negra, mãe, macumbeira e mestre em educação

"Quero abrir passagem para outros negros”, diz Jaqueline Conceição 

da Silva, educadora da periferia.

Postado por: Da Reportagem em 08/03/2016 às 17:37     |   
 Última atualização: 08/03/2016 às 17:38
Jaqueline  (1)
Assumir-se! Negra, mãe, macumbeira, moradora de uma ocupação na zona norte de São Paulo e mestre em educação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Jaqueline Conceição da Silva assumiu e venceu muitas batalhas ao longo dos seus 31 anos, mas, firme para encarar a realidade adversa, titubeia quando é questionada sobre seus sonhos.
“Sonho é aquilo que quando a gente vai deitar, fecha o olho e nos faz bem, né?”, reflete e, logo, pontua: “Eu tenho metas e um desejo de ver meus filhos homens adultos, com famílias constituídas e de preferência com filhos. Que eles tenham suas companheiras, companheiros, filhos biológicos ou adotados, e eu possa ver isso. Igual família de filme norte-americano, com patriarca e matriarca sentados reunidos”, emociona-se a pedagoga.
Nascida e criada no Jardim Damasceno, bairro periférico da zona norte, Jaqueline desviou-se dos caminhos profissionais trilhados pelas mulheres da sua família, a maioria empregadas em serviços domésticos, e foi pioneira na conquista de um diploma acadêmico. Agora, cultiva como umas das suas metas principais transformar outras realidades. “Quero abrir passagem para que outras mulheres, homens e jovens, e cada vez mais os negros, consigam furar a bolha e o paradigma de ser negro no Brasil”.
A inspiração para a vida acadêmica teve início a partir da convivência com as educadoras do Espaço Cultural do Jardim Damasceno, um galpão na entrada do morro, ponto de referência histórico na vida cultural e social dos moradores do bairro. Lá, Jaqueline participou como educanda dos 10 aos 18 anos e depois trabalhou como educadora e oficineira até os 22.
Casou-se com um professor de filosofia. Teve três filhos. A primogênita morreu logo após o parto, há aproximadamente 12 anos. Formou-se pedagoga, mas foi durante o mestrado em educação que encarou um dos processos mais transformadores da sua história: descobriu-se negra.
O processo
“Acho que na PUC foi a primeira vez na minha vida que eu vivenciei situações de racismo explícito, a ponto de eu querer desistir de tudo. Tive muitas crises. Ia asseada, limpa e maquiada, tentando reproduzir as normas sociais de convivência daquele ambiente e mesmo assim era rejeitada”, relembra.
Jaqueline conta ter vivido em um ambiente familiar com formação preconceituosa. “Cresci com uma referência de que ser negro era algo muito ruim. Olhava no espelho e via que eu não era branca, mas ao mesmo tempo eu não me achava tão negra assim”.
Filha de uma mulher negra com um descendente de polonês, Jaque, como é conhecida, tem uma irmã paterna loira, com quem não convive harmonicamente. Em uma noite na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, ouvindo uma canção do músico Ba Kimbuta, Jaqueline colocou-se a refletir.
“A música falava das dores que a travessia da África para cá causou e a dor de ser negro, da rejeição, solidão, medo, fome, miséria e esquecimento, mas também fala de beleza, força, resistência. Foi a primeira vez que entendi o que é ser negra e vi que eu não estava sozinha. Não tinha motivos para negar a minha dor, uma dor legítima e era ela que tinha que me dar força para seguir em frente”.
O candomblé a ajudou nesse processo de identificação. “Eu me sentia perdida, sem origem e isso o candomblé me deu. Agora, eu sei que sou filha de Xangô, tenho minha ancestralidade na cidade de Oyo, na Nigéria, no reino de Oyo, o maior reino dos Iorubás. Isso me deu uma sensação de localização no mundo e de força muito grande, porque eu sei onde está a minha raiz e sei pra onde ir”, diz. Não tem problemas com o termo macumbeira quando se autodenomina.
Em 2014, a partir da observação da realidade em que vivia na região do Capão Redondo, na zona sul, a pedagoga escreveu o artigo “Só Mina Cruel – Algumas Reflexões Sobre Gênero e Cultura Afirmativa no Universo Juvenil do Funk”, que foi aceito em uma conferência na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.
A jovem, que utilizava os R$ 1500 da bolsa do mestrado para complementar o orçamento doméstico, e muitas vezes não tinha dinheiro para pagar os xerox ou a condução, fez uma vaquinha on-line para a viagem internacional. A história, contada no Blog Mural (Professora cria ‘vaquinha on-line’ para apresentar artigo sobre funk, nos EUA) ganhou repercussão na mídia e chegou aos ouvidos da funkeira Valeska Popozuda, cujas músicas eram citadas na pesquisa.
Valesca ajudou (leia Valesca Popozuda vai bancar viagem de pesquisadora aos EUA) com os custos. Jaqueline viajou e viveu uma experiência que disse ter sido “revolucionária”. “Eu sou uma pessoa de quebrada, uma favelada. Até hoje não consigo mensurar o impacto de ter apresentado um artigo na Columbia. Às vezes parece ter sido um sonho. Foi muito significativo e reforçou a ideia de que eu posso, e se eu não posso, eu tenho e preciso ter força para conseguir”.
Crescer e multiplicar
Todas as mudanças e a valorização da sua identidade fizeram com que Jaque criasse o seu negócio social chamado Coletivo Cultural di Jejê.  O projeto tem como objetivo a produção e difusão de conhecimento sobre os negros no Brasil, em especial as mulheres negras e a juventude. A mestre, que está agora a caminho do doutoramento na Universidade Federal de Santa Catarina, viu surgir na UFSC uma nova inspiração.
Entre setembro e outubro do ano passado, Jaque resolveu aplicar um curso sobre Angela Davis, intelectual negra norte-americana, para os coletivos negros e alunos de graduação e pós na instituição. “Percebi uma angústia muito grande por eles não terem esse conteúdo dentro da universidade, essa referência. Os professores são brancos, os autores, o pensamento é branco, e senti um alívio muito grande porque era uma mulher negra falando sobre uma mulher negra para os negros”.
Não satisfeita, ela voltou para São Paulo pensando na possibilidade de difundir esse conhecimento em uma linguagem acessível para a periferia e foi assim que Jaque voltou para o Espaço Cultural do Jardim Damasceno. Aos sábados, ela desenvolve mini-cursos com temáticas como feminismo negro, direitos humanos, intelectuais negros, racismo, cultura, violência doméstica, complexo prisional e genocídio da juventude negra.
“Sem o espaço não teria conseguido viver e suportar a minha adolescência nos anos 90, no Damasceno, na Brasilândia, na periferia. Então, tem um valor afetivo, político, histórico pessoal e educativo. A retomada com os cursos tem a ver com uma sensação de débito também”, conta.
Os cursos custam R$ 40, incluindo alimentação, material e certificados. Os moradores do bairro são isentos da taxa. Retirando as despesas, as aulas geram o seu salário atual em torno de R$ 600. O retorno pessoal é multiplicado. “Me sinto realizada enquanto pessoa, naquilo que eu defendo de possibilitar outras mulheres negras refletirem sobre a sua realidade e avancem sobre ela, rompendo o ciclo cada vez mais”.
Por Cleber Arruda, 34, correspondente da Agência Mural em Brasilândia

Fonte: https://www.portaldajuventude.prefeitura.sp.gov.br/noticia/negra-mae-macumbeira-e-mestre-em-educacao-pela-puc-sp/

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